Em 2019 os pesquisadores e profissionais da área de educação, incluindo professores, foram objeto de atenção em todo o mundo. Dos “coletes amarelos” na França, que entre outras reivindicações demandavam o fechamento da ENA (Escola Nacional de Administração, responsável pela formação da elite gestora do Estado e de muitas das maiores empresas na França) aos estudantes que protestam em Hong Kong, passando pelo movimento de jovens exigindo a revisão de pensões e dos custos da educação no Chile, o noticiário e as análises transformaram o ensino superior em tema obrigatório. No Brasil, o resultado deprimente obtido pelos nossos estudantes no PISA ressaltou a seriedade do problema, num país que patina para encontrar saídas para a terrível crise econômica em que fomos lançados pela inépcia de uma elite acanhada, medíocre e mal-educada. Mundo afora há sinais de que um dos grandes avanços da modernidade – a democratização dos critérios de hierarquização social através da escolaridade – pode ter efeitos perversos. A generalização do acesso à escola básica vem acompanhada de inúmeros benefícios, especialmente associados à urbanização e às condições sanitárias e de saúde em geral. Mesmo assim, estudos mostraram que a universalização da educação secundária resultou em maior concorrência de trabalhadores qualificados pelos postos de trabalho disponíveis, que inclusive tiveram salários reduzidos. No caso do ensino superior, a massificação e, em alguns casos, a universalização, ao contrário das expectativas, tanto de analistas quanto de políticos, foi acompanhada por um aumento importante na desigualdade social.
Esse é um paradoxo do qual participamos, antes mesmo de ter atingido a massificação da educação universitária. Com apenas 25,2% dos jovens de 18 a 24 anos frequentando algum curso de nível superior ainda temos um longo caminho pela frente se quisermos garantir maior igualdade de oportunidades educacionais e sociais. Buscar explicações para esse quadro tem sido a proposta central do trabalho do LAPES. Em publicações (todas elas disponíveis no site https://www.lapesbr.net/), seminários e participação em debates públicos (vários deles também disponíveis no site), os pesquisadores do Laboratório têm decifrado alguns meandros dos jogos sociais que produzem o tipo de resultado sombrio. Porque, na verdade, cada um de nós acredita que os espaços da educação são maleáveis o suficiente para permitir que políticas bem desenhadas tenham efeitos positivos e permitam superar dificuldades e desigualdades mais brutais.
Dessa forma, como diz nossa colega e amiga, Professora Helena Bomeny, “Minha questão permanente diz respeito ao dilema tocquevilliano de efeitos da ampliação do acesso, da democratização do acesso ao ensino superior e seus efeitos não só sobre instituições, mas sobretudo sobre o público que entra na universidade. Uma boa questão, diria o mestre Tocqueville, a nos exigir reflexão para encontrar saídas que não sejam de interdição ao avanço democrático.”
E como tudo isso se traduz em questões de pesquisa? Pode-se começar pela avaliação das diversas políticas públicas que aumentaram as oportunidades de acesso ao ensino superior: houve algum aumento de estudantes que anteriormente não estavam incluídos? Parece que sim. Mulheres (que vem aumentando sua presença desde os anos 1960), negros, pobres, são agora mais presentes na universidade brasileira. Mas essa presença é variada segundo as áreas de conhecimento e segundo o tipo de instituição, sendo diferenciada também conforme a modalidade de ensino (presencial ou a distância) e diploma (bacharel, licenciatura, tecnológico). A tese de Clarissa Tagliari Santos analisa justamente a evolução dessa estrutura de oportunidades que acompanha a expansão do sistema de ensino superior.
Abertura de alguns espaços no ensino superior para novos alunos não significa que os antigos alunos tenham desistido desse recurso social tão precioso que é a universidade. Marisol Goia e seus orientandos analisam as novas tendências na escolarização das elites: bilinguismo, internacionalização, formações alternativas nas escolas de negócio. Parece haver indicações de mudanças nas regras sociais que definem o pertencimento à elite, alterando-se a posição, a forma e o conteúdo da escolarização superior.
Escolher uma carreira profissional através de cursos superiores é um problema que aflige milhões de jovens e suas famílias. Afinal, essas escolhas podem definir rumos para a trajetória ocupacional e a vida pessoal de cada um deles. Certamente este é um tema importante para a sociologia, que desde os pais fundadores debate o problema das vocações e as contribuições da dimensão social para sua definição. Num enfoque diferenciado da pesquisa psicológica, sociólogos tentam entender como a posição social, o sexo ou a raça podem ser fatores relevantes na definição das carreiras. A tese de Leonardo Augusto Rodrigues trata, entre outros pontos, da situação das mulheres nas especialidades distintas da engenharia, cada uma com suas peculiaridades. Num momento em que os dados brasileiros indicam que 70% dos diplomados no ensino superior que ganham até um salário mínimo são mulheres, essa temática é ainda mais relevante.
Tendo havido algum nível de inclusão de estudantes, como as instituições se organizaram para lidar com esses jovens? Em geral, estudantes de novos grupos sociais presentes no ensino superior enfrentam inúmeras dificuldades que demandam ações institucionais e políticas de acompanhamento bem desenhadas. Este é o lado complicado das políticas: elas são executadas por atores e grupos que têm suas próprias perspectivas sobre os temas e pessoas que são objetos dessas políticas. O desvendamento dos jogos e disputas sociais que classificam pessoas, valorizam ou desvalorizam determinados procedimentos, atuam favoravelmente ou se contrapõem às regras definidas pela política ou instituição, permitem compreender boa parte do sucesso ou fracasso de algumas propostas de democratização da universidade. A tese de Eduardo Borges vai tratar da implementação das políticas de acompanhamento acadêmico da UFRJ, destacando a diversidade no interior de uma única instituição, comparando também com outras universidades, inclusive privadas.
Como se vê, entrar para a universidade não resolve todas as questões pessoais ou das políticas de democratização. Na verdade, outros problemas se colocam: quem são as pessoas que conseguem terminar os cursos? Quais pessoas terminam quais cursos? Em quais instituições? Num estudo preliminar de 2017, André Vieira, Clarissa Tagliari e M. Ligia Barbosa mostram dados interessantes sobre as chances de conclusão dos diferentes cursos, nos setores público e privado. Uma indicação que ainda carece de melhor refinamento analítico é que o setor público de ensino superior aumenta as chances de formatura dos estudantes que têm pais mais educados. Por outro lado, o setor privado parece favorecer a formatura de estudantes com pais mais ricos.
Para além das chances de completar o curso, surgem demandas por transparência e pela demonstração do valor efetivamente agregado pela passagem nesse nível de ensino. A pesquisa sobre as transições do ensino superior para o mercado de trabalho se expandiu tanto no Brasil como nos países mais avançados e nos organismos internacionais. Entre os pesquisadores do LAPES que analisam essa questão, a tese de André Vieira focaliza a inserção inicial dos egressos do ensino superior no mercado de trabalho, verificando a existência (ou não) de vantagens econômicas e sociais para aqueles que chegam a se diplomar. A existência de muitos diplomados não significa necessariamente muitas pessoas com emprego melhor: dados recentes também mostram que os egressos do ensino superior ficam mais tempo desempregados (mais de 14 meses, segundo o IBGE) do que as pessoas com ensino primário (em torno de 12 meses). Esta tese visa estabelecer os fatores sociais que definem as chances de um jovem egresso do ensino superior encontrar um bom emprego nos três anos seguintes à sua formatura.
Todos esses temas estarão reunidos num livro sobre a Expansão Desigual do Ensino Superior, a ser lançado pela Editora Appris em abril de 2020. Maiores detalhes em breve.
No plano das forças estruturais que organizam o sistema de ensino superior, a pesquisa proposta no DesEstrutura (Grupo de pesquisa sobre desigualdades estruturantes), coordenado pela Professora Carolina Zuccarelli, do departamento de Sociologia da UFF é bastante promissora. Ao mesmo tempo, nossa colega vem organizando um estudo – a ser debatido em breve num seminário do LAPES – sobre as complexas relações entre a universidade e o desenvolvimento regional. Tema caro aos economistas, agora debatido entre sociólogos. Ótima perspectiva.
Ainda em termos de avanços e perspectivas para nosso trabalho docente e de pesquisas há outras boas notícias. A ida da nossa colega, também pesquisadora do LEPES, Professora Rosana Heringer para um estágio pós-doutoral na Universidade do Texas (Austin) permitirá um grande desenvolvimento nas pesquisas sobre permanência, reforçando a dimensão comparativa no plano internacional.
Também sobre o tema da internacionalização do ensino superior, Clarissa Neves e Maria Ligia Barbosa organizaram um dossiê para a revista Sociologias, com contribuições de colegas que analisaram as experiências institucionais em todos os continentes. No Fórum de Sociologia a ser realizado em Porto Alegre em julho haverá também uma sessão que acolherá trabalhos de colegas de diversas nacionalidades analisando as diferentes dimensões das políticas de internacionalização.
Finalmente, um pouquinho de marketing: o curso Desigualdade social no ensino superior: questões teóricas e metodológicas, no PPGSA/UFRJ, no primeiro semestre de 2020 juntará os esforços do LAPES e do Laboratório de Estudos sobre Diferenças, Desigualdades e Estratificação (LeDdE), com as Professoras Maria Ligia Barbosa e Felícia Picanço coordenando os debates.
As perspectivas de trabalho são promissoras. Votos de que estejamos todos à altura dos desafios. Um ótimo 2020 para cada um dos colegas e amigos que chegarem até aqui...
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