No ano do centenário de morte de Max Weber, discutir os dilemas vividos pelos atores institucionais no processo de expansão do sistema de ensino superior pode ser uma boa forma de homenagear o sociólogo alemão. Entre os muitos caminhos e temáticas possíveis, focaliza-se aqui a abertura do ensino superior brasileiro aos novos públicos, aos estudantes que vieram de famílias sem outras experiências universitárias.
Sempre houve bastante debate sobre a ideia de que permitir a entrada de mulheres, de pobres e de pretos poderia diminuir a excelência da universidade. Afinal, a universidade é uma instituição destinada a preparar a elite, competente e, em muitos casos, até legitimamente, pronta para dirigir a sociedade. Ou ainda, num tom mais econômico e liberal, a universidade deveria qualificar da melhor forma possível os profissionais que fariam os trabalhos mais prestigiados e, talvez, mais exigentes intelectualmente, demandando maiores habilidades cognitivas e melhor treinamento técnico.
Mas a democracia é dinâmica e disputas sociais abrem espaço para manifestação de outras vontades, de outras perspectivas sociais. Assim, a ideia de que o destino do ensino superior é a preparação da elite, que já começara a ser abalada com a perspectiva de que esse nível de educação também seria um excelente fator de desenvolvimento econômico ao preparar mão de obra qualificada, foi fortemente atingida com a criação de políticas de inclusão social.
Houve efetivamente uma expansão da educação superior no mundo todo. Em 2014 eram 207 milhões de estudantes universitários no mundo, mais que dobrando os 100 milhões da virada do século XXI. Expansão tão significativa que chegou a ser comentada na coluna Free Exchange, da revista The Economist (em 24/10/2020). Com um título provocativo (Graduados do mundo uni-vos!), a revista comenta possíveis complicadores do excesso de membros na elite resultante desse crescimento. Sendo cada vez mais difícil entrar numa boa universidade e, mais difícil ainda, assegurar algum dos poucos empregos verdadeiramente “dignos da elite” ainda disponíveis, poderia haver alguma tendência a insatisfação, protestos e, mesmo, crises mais fortes. O artigo menciona estudos sobre a movimentação política ligada aos ciclos históricos de fortalecimento ou enfraquecimento da democracia: desde o populismo de direita e esquerda, nas democracias estabelecidas, até as manifestações mais violentas, como os coletes amarelos na França. Nesse ponto do ciclo, a expansão do ensino superior poderia enfraquecer a vida democrática. Mas mantendo sua tradicional postura liberal, a revista indica – e esse ponto é provocativo para sociólogos weberianos – que os ciclos históricos não são destino! Ou seja: segundo a Economist, podem surgir mais elites esclarecidas nesse ciclo histórico, capazes de propor avanços na organização da vida urbana, reforço nos diálogos democráticos, maior coesão social.
Mais que isso, a revista menciona caminhos opcionais para a formação universitária, cursos mais vocacionais e mais cursos, apesar de não entrar em detalhes. Interessa destacar as ideias de ação, estratégia, escolha, como alternativas às ideias de destino e determinação.
As condições legais, econômicas e sociais, assim como o contexto político, obviamente têm impactos sobre o modo como a universidade e o ensino superior em geral funcionam. Mesmo assim, a pesquisa indica, com muitas evidências, as possibilidades de ação e de escolha dentro de cada instituição do sistema de ensino. Os tempos terríveis da pandemia também mostraram que essas instituições agiram das mais diversas formas para garantir a permanência dos estudantes, das atividades de ensino e pesquisa, dos diversos serviços prestados à comunidade. É interessante notar que ganharam mais destaque, mesmo nas universidades mais intensamente voltadas para a pesquisa, as funções de ensino e orientação de alunos. Se isso significa uma mudança no modelo institucional do sistema de ensino superior brasileiro ainda é cedo para saber.
São muitas evidências indicando que instituições de ensino superior são espaços de escolha para seus diferentes atores e grupos, permitindo ações que podem mudar (ou não) as configurações de forças sociais e o sentido da experiência universitária. Cabem escolhas variadas e profundamente significativas, que certamente desenham resultados diferentes. É possível escolher qual função universitária privilegiar (Ensino? Pesquisa? Extensão?) ou que tipo de curso oferecer e como selecionar os estudantes. Também pode-se definir os turnos preferenciais dos cursos, ponto essencial para quem trabalha enquanto estuda. Num plano mais amplo, sistêmico, há decisões possíveis sobre padrões de financiamento do ensino e da pesquisa ou ainda de distribuição de bolsas e empréstimos.
Para os menos otimistas, o destino, travestido de pandemia, decidiu por nós a implantação das aulas remotas. Como weberiana desencantada e que não acredita em soluções mágicas, a otimista que sou percebe todo o espaço de escolha que nos foi deixado, mesmo nessa situação calamitosa. Além disso, é bom lembrar que essa foi uma situação difícil especificamente no setor público: as instituições privadas escolheram, há muitos anos, fazer educação à distância, que hoje atende pelo menos ¼ dos estudantes de graduação no país. O conhecimento do setor privado sobre as metodologias didáticas e as formas pedagógicas que incorporam novas tecnologias pode ser uma contribuição importante para a manutenção da excelência do setor público.
Parafraseando Mario Vargas Llosa, sobre as possibilidades de escolhas societais, nós podemos ter o sistema de ensino superior que escolhermos. Podemos aceitar o destino de ser uma instituição elitista ou escolher ser uma universidade inclusiva. Podemos aceitar o destino das péssimas colocações nos rankings internacionais ou escolher mostrar a qualidade e excelência que produzimos. Quase todas as escolhas são muito trabalhosas. Por isso mesmo não são destino ao qual nos resignamos. São escolhas pelas quais agimos.